segunda-feira, 11 de maio de 2015

A morte de Isaías Arruda na estação do trem de Aurora/CE

Por: José Cícero



A tarde estava cinzenta naquela Aurora pacata e provinciana de 1928. Uma enorme sensação de tranquilidade cobria os semblantes dos viajantes, assim como o coração e o pensamento da multidão que se aglomerava na pedra da estação. Uma cena comum a todas as cidades interioranas atendidas pelo velho trem da Rede Ferroviária Cearense (RVC). Nuvens cor de chumbo em formação pareciam prenunciar no céu daquela Aurora antiga e calma, algo diferente prestes a ocorrer: uma tragédia. Aurora – apenas uma cidadezinha dos anos vinte como tantas outras quase esquecidas nos grotões nordestinos.

Um povoado monótono e aprazível, esmaecido na preguiça de um tempo lento em que a existência do trem, assim como a construção da sua estação ferroviária eram por assim dizer, o maior de todos os sonhos até então realizados nas paragens do Cariri. A mais inacreditável das invenções humanas direcionadas ao progresso dos sertões, até então abandonados no oco do mundo pelos homens da política do litoral. O trem, portanto era um acontecimento social. Uma festa quase utópica e operística.

Uma criação tão fantástica ao ponto de ninguém querer desejar mais nada das hostes do poder. Em última análise, o trem era a glória das glórias... E Aurora de alguma maneira vivia isso em todas as suas plenitudes e consequências. O progresso e a modernidade, diziam as elites paroquiais, começavam a dá o ar da sua graça...

Naquela tardinha quase insossa de sábado, dia 4 de agosto de 1928 quando muitos já se esqueciam dos episódios um ano antes relacionado à presença do rei do cangaço na terrinha; o velho aparelho do telégrafo da RVC de novo estava prestes a receber no código morse um telegrama diferente. Um comunicado estranho; digamos que chave, para todos os desdobramentos do acontecimento dramático que se seguira ao fato: “Antonio, algodão hoje sobe!”. Uma missiva quase enigmática considerando que o algodão – o ouro branco d’Aurora faria sempre o sentido contrário, ou seja, descia. E o seu preço no mercado há muito era de todos conhecido.

Porém, aquela mensagem codificada não seria de todos estranha. Havia um destino e um desiderato certo: surpreender o coronel. Dizia muito mais do que ali estava escrito de modo lacônico... A estação de Aurora estava repleta de gente. Um acontecimento que se tornara comum deste a sua inauguração oito anos antes em 7 de setembro de 1920.


Jagunços do Coronel Arruda
Todos esperavam o trem que vindo da capital trazia consigo as notícias e as novidades da Fortaleza e do mundo. Era o trem de ferro rasgando as "bibocas" da caatinga, fazendo a ligação da metrópole com a feira de Juazeiro e Crato. Era o jornal e a televisão daquele tempo de atraso, ignorância e dificuldades. Razão pela qual a ‘pedra da estação’ de todo o interior(assim como a de Aurora) passou a ser o local mais frequentando pela sociedade da época. 


Sem distinção de cor ou posição social. Um teste de democracia de modo antecipado e que ninguém parecia não se dá conta. A multidão se acotovelava literalmente em toda a extensão da plataforma da estação de Aurora. Curiosos, viajantes, chapeados, crianças e vendedores ambulantes, todos se misturavam numa massa compacto e quase uniforme de gente na eufórica expectativa da passagem do trem. A pedra da estação estava lotada de aurorenses da sede e dos sítios adjacentes. E até mesmo de cidades circunvizinhas. Era uma tarde calorenta e diferente das demais. Quase uma feira-livre. Uma babel de interesses e fantasias... Aquela espera para todos, era uma eternidade.

Contudo, em meio aos que esperavam aquele trem da RVC, alguns estavam ali com outros propósitos. Muito além dos interesses comuns que animavam a maioria cotidianamente durante as idas e vindas do velho transporte ferroviário. Quem sabe, um acerto de contas. Um negócio em nome do mercantilismo? O que a história, como testemunha ocular do tempo em alguns instantes não demoraria a registrar para à posteridade as verdades insofismáveis daqueles fatos.

E a cronologia do momento seguinte, provaria depois para todos que era um crime. Um atentado violento à ordem e a vida em nome da vingança e da intolerância. Uma intriga passada à limpo, expressa na força da violência e da ignorância em detrimento da razão e da justiça.

Sinais de uma época densamente marcada pelo poder de fogo do coronelismo oligárquico, engendrado pelos mais temíveis e truculentos líderes políticos que o Cariri cearense já experimentou. Um período onde a lei no mais das vezes era a do mais forte e a justiça quase sempre era feita pelas próprias mãos, em geral, dos poderosos. Naquele sábado, de tarde escura de agosto, a estação de Aurora não tardaria a ser palco de um episódio que marcaria à história do Cariri e do Ceará para sempre, vez que envolveria, aquele que foi certamente o mais famoso e temível chefe político da região: o coronel Isaías Arruda. Filho do lugar, ex-delegado, agora prefeito pela força da vizinha Missão Velha. De quebra, o maior dos coiteiros de Lampião no interior cearense. Um autêntico mantenedor de jagunços e hábil negociador político junto aos grandes da capital.

A tarde caia lentamente... O povaréu já parecia se cansar pela lentidão da espera que se prolongava mais que nos dias normais. O guarda-chave gritara aos presentes em nome do agente Viana de que o trem daquele sábado se atrasaria devido a parada que fez para reparos e reposição nas estações de Iguatu e Cedro. No entanto já deveria está nas proximidades de Arrojado, Lavras ou Iborepi. Ingazeiras e Missão Velha também solicitaram informações pelo telégrafo por conta do atraso da locomotiva, disse o Viana com os olhos voltados para a curva da linha de ferro ao Norte onde o trem da feira deveria a qualquer momento apontar seu bico.

O relógio do prédio apontava 14h25min quando, finalmente, todos puderam escutar o apito estridente da máquina a ecoar no horizonte. Apenas Sabina entretida demais com o seu café não se deu conta do acontecido. Todos, de repente voltaram suas atenções na direção do corte-grande lá para as bandas do alto da cruz, do sitio Frade. O trem da Fortaleza vinha ligeiro beirando o rio Salgado.

Ao longe foi possível ouvi mais um apito e o barulho forte da locomotiva esbaforida pela temperatura como um gigante estremecendo o solo aurorense. Em seguida, um torvelinho enorme de fumaça coloriu o céu da Aurora de um escuro forte e bizarro nuca dantes visto pelas pobres alma. Cheiro de brasa, madeira queimada pelo ar. Como se a caldeira e fornalha da Maria-fumaça só quisessem queimar um estoque infindável de jurema braba.

A meninada num frenesi gritava de cima do morro para os demais: lá vem, lá vem o trem, tirem o cachorro do meio que o bicho não enxerga ninguém...

Quando enfim, o trem apontou sua cara na curva da linha. Foi um alvoroço deveras interminável. Um Deus nos acuda. A multidão acorreu para a pedra. E o comboio começou a ficar cercado de gente por todos os lados. Era como se toda a cidade estivesse ali, naquele instante, dando vivas ao trem com seus passageiros caririenses.

Nesse ínterim: Um bêbado no meio do povo, do alto do seu entusiasmo etílico até exclamou exaltado:

-Vixe Maria! Deus me ajude... Um dia ainda me caso com esse trem danado...

Agora o relógio da estação cravava exatos 14h30min. As rodas da máquina de ferro começavam a riscar os trilhos daquela estação. Uma sensação estranha, uma ilusão de óptica... Como se o prédio e as pessoas estivessem passando e o trem permanecesse petrificado em seu estado inercial. Os primeiros vagões da primeira classe já beiravam a plataforma. Todas as atenções agora estavam voltadas para as janelas e portas do trem "intupetado" de viajantes e, que já parara completamente. Os vendedores se agitavam oferecendo os seus produtos alimentícios: água fresca nos potes e nas quartinhas de barro. Frutas, comidas, bolos, salgados e outras guloseimas...

Toda a gastronomia tradicional da Aurora parecia está ali desfilando seus dotes na estação do trem para a freguesia. Um incentivo direto ao pecado da gula dos passageiros e transeuntes. Exímios chapeados transportavam com pressa e celeridade grandes caixotes, pacotes e outros fardos de mercadorias. Uns desciam para o armazém da RVC outros subiam para os vagões do trem com destino ao Crato. Animais, peças de madeira, artesanato, aguardente, rapadura, oiticica, panelas de barro. O trem acelerava a curiosidade, tanto quanto a economia daquela terra.

Mas de repente o som de um tiro seco ribombeou no ar. Quebrando a normalidade natural daquele acontecimento diário. Em seguida vários outros disparos puderam ser ouvidos no interior do segundo vagão da primeira classe. Talvez sete ou oito no total... Até hoje ninguém sabe ao certo. Um silêncio quase sepulcral se abateu na plataforma por alguns instantes que pareceram eternos. Somente o ronco da locomotiva estacionada defronte a caixa d’água. Em seguida uma correria...

Vozes diziam tratar-se de uma discussão. Três homens saíram atracados e em seguida correram no sentido contrário do vagão. Uma disparada em direção do armazém e depois para o beco da antiga rua que dava para o cemitério. Um quarto homem um tanto elegante, bem tratado, gestos aparentemente finos surgiu do segundo vagão da primeira classe. Vestindo impecavelmente um linho branco, ele pisou de modo esquisito e desaprumado o piso, a pedra da estação. Alguns passos apenas e cambaleando fitou a multidão como quem quisesse dizer algo. Não foi possível.

Sangrando e com a mão direita colada ao peito chamava baixinho pelo primo. O linho branco do seu terno agora começava a se tingir de vermelho. Seus sapatos de cor marrom e bem polidos contrastavam com o vermelho escuro do seu próprio sangue formando porças na plataforma. Era o coronel Isaias Arruda, chefe político, prefeito da Missão Velha. Homem afamado em toda região e na capital do estado. Devagar caiu ao chão da plataforma ainda com arma junta ao cinto da calça. Não teve tempo de usá-la.

Alguém saindo de dentro do vagão posterior se aproxima dele e forra o chão da pedra com um jornal que lia; edição do dia 3. Seu braço esquerdo e parte superior do tórax estavam em frangalhos. Ferimentos gravíssimos provocados pelos sete balanços com que fora atingido.

O coronel ferido seriamente pronunciava baixinho como que cansado:

- Os irmãos paulinos me acertaram! Mas como é que nem o Viana nem ninguém me avisou que meus inimigos estavam aqui?! Bando de covardes...


E de chofre emendou:

- Alguém me chame o farmacêutico! Foram os Paulinos, eles me acertaram... Bando de covardes!

A multidão agora abria caminho para o pessoal da RVC. Muitos correram na direção da rua, se afastando da cena do crime, talvez com medo de um novo tiroteio. As janelas dos vagões agora estavam cheias de curiosos passageiros, ainda que perplexos. Outros mais ousados e corajosos aos poucos foram se aproximando da vítima que gemia deitada ao solo da pedra sobre as folhas do jornal ‘O Ceará’. Enquanto isso, um pouco afastado da estação José Furtado (Nequinho de Milica) primo da vítima saíra em perseguição (ou fugindo) dos irmãos Paulinos: Antônio e Francisco, responsáveis pelo atentado.


Estação da RVC, ali foi alvejado Isaias Arruda

Levado para a residência de Augusto Jucá um antigo amigo na rua grande, Isaías foi socorrido, inicialmente por um farmacêutico - o único que existia na cidade. No dia seguinte dois médicos vindo de trole pela linha da RVC: Antenor Cavalcante e Sérgio Banhos atenderam o coronel. Porém, diante das gravidades dos ferimentos não tiveram como salvá-lo. Sendo que no dia 8 de Abril uma quarta-feira às 6h da manhã, quatro dias após ser alvejado, Isaías Arruda faleceu como que por capricho do destino na terra em que nascera. Rumores apontaram ter sido o assassinato uma vingança de Lampião pela traição do coronel um ano antes, durante a célebre tentativa de envenenamento do bando lampiônico e o histórico cerco de fogo do sítio Ipueiras, propriedade de Arruda em Aurora em cujo local Virgulino se arranchara por diversas vezes.

Ocasião em que o rei do cangaço fugia das volantes após o fracasso da invasão de Mossoró, arquitetada sob as estratégias de Massilon Leite e financiada pelo próprio Isaías. Mas o certo, segundo se provaria depois foi que os Paulinos vingaram o assassinato do irmão mais velho João, morto numa emboscada no serrote d’Aurora pelos jagunços de Arruda no ano anterior. Terminava ali de modo trágico, na estação ferroviária de Aurora a verdadeira saga de um dos mais temíveis e respeitados coronéis do Cariri - Isaias Arruda. Assim como sua rixa ferrenha contra os irmãos Paulinos da Aurora.

(*) Prof. José Cícero é pesquisador, escritor,poeta e atual secretário de Cultura de Aurora. 

Fontes:

O Ceará em Brasília - O sangue de Isaias Arruda - J. J de Oliveira. Pág. 5 edição de 1997.
Aurora: História e Folclore - pág. 155 - 2ª edição. Crônica dos Paulinos – A.G. Tavares – 1996.
Missão Velha: Nosso Povo, nossa História - Célia Magalhães – 1994 Ed. Universitária.
Lampião – o rei do cangaço – Billy Jaynes Chandler - ed. Paz e Terra – 1980.
Revista Aurora – (J. Cícero). edições de 2007-2008: Incursões de Lampião e seu bando por Aurora.
Arquivo pessoal do autor e pesquisa oral.

Nenhum comentário:

Postar um comentário